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A velha adormecida

Entrei ontem no barbeiro, já ao final do dia, no mesmo onde o meu pai - na sua existência ainda terrena - cortava o curto cabelo que ainda tinha. Bem longe da minha terra onde agora vivo.

Já passava da hora e a porta estava encostada, mas lá dentro a tesoura trabalhava e assim ousei. Perguntei se ainda podia... O jovem que tesourava acenou a cabeça e convidou-me a entrar.

No chão vi uma figura que não esperava. Uma velhota estendida que minutos atrás havia desmaiado. Levantei os olhos em tom de pergunta e a resposta veio: "estava aí sentada e de repente desmaiou. já chamei o inem... devem estar a chegar..."

Parecia morta. E ele continuava a tesourar. Senti por ali a alma de Felinni a fotografar, a tomar notas para o seu próximo filme numa outra encarnação, se a tiver...

Perguntei ao jovem barbeiro como se chamava a velhota. "Esmeralda", disse.

A Esmeralda parecia morta. Respirar não se via. Pulso não se sentia.

"Alimenta-se mal", dizia o profissional do local, "está muito fraquinha."

"Dona Esmeralda!!" chamei eu, em tom directivo enquanto lhe punha a mão no ombro. "Vamos acordar??", continuava eu em tom de sargento com um laivo maternal.

A velhota nada, não reagia. Imaginei-me por segundos a fazer boca-a-boca naquela velha e engelhada boquita desdentada. Admito, não foi uma imagem simpática. Mas voltou-me ao ecran mental com uma legenda bruta e crua: "Já deixei morrer um. Não vou deixar morrer outro..."

Mas lá continuava o eu sargento a chamar, com uma mão de Fátima no ombro da velha senhora. Até que ela começou a espasmar, a convulsar. Como se a energia se voltasse a ligar. Sorri por dentro e por fora e continuei a chamar.

"Vá abrindo os olhos!!" arriscava eu. "Ai que ela vai vomitar", dizia o jovem barbeiro a antecipar uma valente e intensa limpeza ao chão do seu salão.

"Não!" tranquilizava-o eu, numa externa segurança. Mas os espamos que eu via na minha mente transformaram-se, naquilo que parecia ser um estertor (palavra estranha esta). Estertor da morte.

"Vá abrindo os olhos!!", apelava eu entre o tom de sargento e de aflito. E o momento mágico, lá se deu. Com esforço, a D.Esmeralda abria as janelas da alma. Ainda um bocado reviradas, enquanto reforçava positivamente, parecendo eu que estava em consultório em plena laboração motivacional.

A pouco e pouco o desmaio da D.Esmeralda se foi transformando numa soneca, enquanto mais dois fregueses para cortar o cabelo se instalavam e o jovem barbeiro tesourava. Tenho a certeza, Felinni ainda estava por ali. Só saíu mesmo quando o INEM chegou e lá recompôs a velhota que lhes contou a vida e as amarguras.

Mas nessa altura já estava eu na cadeira do barbeiro a tratar da guedelha. Talvez mais feliz, talvez mais tranquilo.

São Mamede de Infesta - 9 de Junho de 2011

(ah é verdade! eu escrevo em desacordo com o acordo ortográfico... com algumas excepções e distracções)

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